segunda-feira, 18 de agosto de 2014

[Contos]      Travessia - Conjecturas com o barqueiro


A travessia
Conjecturas com o barqueiro


Meia-noite. Ou algo próximo, eu diria. A lua cheia brilhava em um céu sem estrelas. Com uma tonalidade vermelho sangue, parecia me encarar friamente segundo após segundo, num compasso demarcado pelas batidas do meu coração. Silenciosa, fez do seu mistério, a minha agonia. Meu corpo tremia. Meus olhos se estreitavam e minha respiração ficava cada vez mais ofegante. O vento cortava a minha pele lentamente ao mesmo tempo que arrepiava os pelos do meu corpo esguio. De fato, estava em uma situação além do que tange a sentimentos meramente humanos. Não era apenas medo, tão pouco simples impotência. Era algo maior, mais complexo e nefasto. Ao meu redor, o campo aberto de grama verde escuro. A minha frente, a beira de um rio que parecia desaparecer no horizonte em um finito inalcançável. Perguntei-me por diversas vezes, o que existia do outro lado da margem. Mas tamanha conjectura se mostrou nebulosa demais para minha mente limitada. Então, simplesmente defini como “O fim de tudo”. Atrás de mim, uma densa floresta de arvores milenares com galhos imponentes e retorcidos. Estranhamente, não lembrava de ter ultrapassado tal local, porém, sua visão era de longe uma das coisas mais assustadoras ao qual me permiti observar em toda a minha vida. Sem movimento, sem cor, um odor fétido. Mas se havia algo ali, era vida. Não uma vida no sentido metafórico ou pluralista, mas sim, singular. A floresta parecia possuir consciencia, onde junto com a lua, criou um espetáculo cruel onde eu sou o centro da loucura.




A atmosfera obviamente não estaria completa sem mais dois fatores bem especiais. Junto com a enorme lua que refletia toda a minha angustia, ouviam-se uivos. Agudos, longos, incensáveis. Minha espinha pareceu congelar. Meu corpo travou ao som do primeiro ganido. Meus dentes rangeram e imaginei que a noite, a lua, e a floresta, eram o presságio para a chegada da besta. Os olhos vermelhos que saem da escuridão quando lua finalmente chega a seu ápice. Não há como fugir, embora correr seja a opção mais sábia. Mas eu sabia que não importando para onde meus pés me levassem, minha existência seria ceifada pela criatura maligna que espreitava em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum. Eu olhava para todos os lados, ouvia o uivo, tentava buscar uma direção, mas em todas as minhas tentativas, me pegava com o olhar perdido no horizonte, fitando com avidez o fim de tudo. Eu queria correr, me esconder. De certo modo, cada vez mais eu sentia sua presença. Cada vez mais próximo de mim, que de pé, frente ao lago, pouco poderia fazer. Não conseguia correr, não era possível gritar. Por um momento, era como se fosse um castigo estar ali. Ser abatido, era minha punição. Uni ambas as mãos e levei até a boca. O medo corria em minhas veias de forma mais consistente que o próprio sangue. Havia em mim um pavor. Não da morte, mas sim do inimaginável. Da face da besta, e da forma como se aproximaria de mim em um andar torto e irregular. Por um momento, me surgiu uma imagem animalesca, mas logo em seguida, era uma forma humanoide e defeituosa que explodia em minha mente. E com isso, a repulsa a presença, ao toque e a existência. Seja o que fosse, queria ter forças para rezar para que nunca se aproximasse de mim. Com o corpo quieto, mas com o espírito vivendo sua própria divina comédia, continuei a esperar. Por mais um dia, um mês, cem anos, talvez. Até que finalmente ele chegou. No horizonte, lá estava ele. Céus, como me senti grato. A morte veio me salvar!


Pouco a pouco sua silhueta tomou forma. Remando lentamente sobre um pequeno barco de madeira com adornos de metal, parecia alheio a tudo que me causava arrepios. Segurava os remos com firmeza e o manuseava com destreza, intercalando nos lados, até que finalmente chegou a margem. Senti um grande alivio, porém, estava prestes a embarcar rumo ao desconhecido. Esta decisão foi tomada de maneira irracional e involuntária. A partir do momento que a embarcação parou frente a mim, já estava decidido que o meu dever era subir e que era a única ação a ser feita naquele momento. Respirei fundo e o encarei. O barqueiro possuía um enorme manto negro que lhe cobria por inteiro. Seu rosto era escondido por uma mascara kabuki teatral de coloração branca. Uma forma simples representando um rosto humano, com os olhos e a boca ressaltada por um contorno negro. Suas mãos possuíam uma estrutura esquelética, cobertas por um par de luvas também negras. Nada de seu corpo ficava a mostra. Quando tentei me focar nas brechas, era como se tudo dentro dele fosse completa escuridão. O que estava parado a minha frente? Era humano? Havia de fato algo ali? Fiquei tentado a descobrir, mas precisei me conter. Os uivos ainda persistiam em minha cabeça e a sensação de que algo estava prestes a dar o bote e me engolir, dominava toda a minha mente. Submisso, assim eu me senti. Dei um passo a frente, e logo após, outro passo. Ele estendeu sua mão e só ai percebi que não existia nada atrás das cavidades para os olhos. Apenas o absoluto negro.


Relutante, segurei em sua mão. Novamente uma sensação estranha tomou conta de mim. Por mais que usasse luvas, sua mão era gelada. Um frio que se estendeu por todo meu corpo. Contudo, conclui que de fato existia algo dentro daqueles trapos. Sua pegada era firme e no momento que me puxou para dentro, me deixei levar, como se partisse para outro mundo.


Bem vindo ao mundo misterioso!
— Proclamou. Sua voz era suave e profunda, ecoando em minha mente. Sua cabeça cabeça se locomoveu de modo a me encarar. Acuado, nada respondi. Apenas dei dois singelos passos para trás e sentei-me em uma pequena plataforma de madeira. — Podemos partir quando quiser, assim que você decidir que é o certo a faze-lo. Uma vez dentro dessas águas, não existe volta. Há um preço muito caro a pagar para cruzar este rio.


Um preço? Como assim… um preço? Eu não tenho como pagar nada… Não mais. Não possuo nada aqui comigo. — Olhei ao redor e a atmosfera parecia ainda conspirar contra mim. O som sutil da noite, os uivos agudos, o vento que me abraçava como a morte. Olhei para baixo, enxergando apenas meus pés descalços, e nada disse. O medo é mais forte que laminas e garras, pensei em silêncio.


Não se preocupe, já está devidamente pago. E sim, você não possui mais nada. Todos que aqui sobem, não possuem mais nada. Tudo já lhe fora tomado, resta apenas o reflexo daquilo que um dia já foi. Aqui, há espaço apenas ao lírico. — Percebi que o barco começou a se mover e que o barqueiro havia começado a remar. Olhei novamente para ele, buscando qualquer força ao qual rezava para possuir. — Não se preocupe, temos um longo caminho pela frente. Fique tranquilo para ter as respostas daquilo que filosofia alguma pode responder. Decifra-me e terá o conhecimento. O que acha que eu sou? — Subitamente, sua mascara mudou de forma diante dos meus olhos. Outrora inexpressiva, agora os olhos se apertaram e sua boca ostentou um sorriso largo e delgado. Dei um pequeno salto para trás. O barco chacoalhou e foi preciso me segurar com firmeza na borda. Olhei para dentro do rio e tive a impressão de que era observado.

O que é isso tudo? — Perguntei.

Pergunta errada — Respondeu prontamente. Inclinou a cabeça levemente de lado, sem parar de remar. — Precisa ser mais especifico, se quer chegar ao fundo do mar. Em tempo, preciso lhe dizer que no fundo do mar, a água não é doce. É escura e perigosa. Mas creio que seja corajoso, apesar de tudo.


Pensei por um momento e tentei buscar algo que considerava próximo de ser uma pergunta chave, porém, perdido em um mar de pensamentos confusos como ondas que se chocam numa noite de tempestade, percebi que tomei mais tempo do que havia imaginado e nenhuma conclusão havia sido tomada. A floresta não existia mais, nem mesmo a beira do rio. Apenas um enorme rio negro e lamurioso, que apenas as vezes, parecia se fundir com a noite na mais completa escuridão e silencio. A partir disto, era como se navegássemos no nada. Remando rumo ao inexistente e engolidos pelas trevas. Nosso pequeno barco, era o único objeto sólido a vista. Minha garganta secou e senti uma estranha tontura. O homem continuava remando, em profundo silêncio.

Onde eu estou, afinal? Ou melhor, o que estou fazendo aqui e quem é você?! — Tomei coragem e cuspi as perguntas em um tom ríspido que pensei que nunca recuperaria. Com a distancia, os uivos cessaram.


Sem parar de remar, e ainda com a expressão alegre em sua mascara, o barqueiro permaneceu quieto por exatos vinte segundos. Até que finalmente se pronunciou. - Você está morto, estamos atravessando o rio stix e o seu destino é o inferno. — A forma como as palavras saiam sem nenhum movimento facial por trás da mascara, enchiam minha cabeça de duvidas e suspeitas, que exigindo o máximo da minha racionalidade, defini como infundadas. Mas alheio a minha pequena investigação a respeito da coisa por trás do manto, tudo que disse soou estranhamente lógico para mim. Não senti medo diante de uma verdade tão apocalíptica, e pela primeira vez, me pus a dialogar. Agora, a curiosidade era superior ao medo.

Morto…? Seria possivel? Eu não me recordo. Eu estou aqui, porém, me sinto como se não estivesse. Então você é a morte? — Ainda perplexo, tentei encarar um pouco da realidade proposta e assimilar a perspectiva de ir para o inferno. — Então o inferno realmente existe… Depois de tanto zombar de crendices religiosas, imaginar que serei punido por um ser de tridente e chifres é um pouco mais cômico, do que assustador, a essa altura. De qualquer forma, desde que entrei neste barco, passei a encarar tudo de uma forma peculiar. Assumo que estava tremendo, mas nesse instante, não tenho medo, tão pouco, arrependimentos. Fiz o que fiz, fui o que fui, e ainda aqui, posso simplesmente recusar essa oferta e por um fim em tudo me jogando nesse rio. Seria o seu senhor, humilde ou faminto o suficiente para vir até aqui me buscar nessa imensidão de silêncio e morte apenas para me atormentar por uma eternidade? Ou melhor, seria eu tão importante assim? — Consegui estampar um sorriso. Meus lábios se arquearam e conclui minhas questões com a dosagem exata desdém.


Humanos, tolos até mesmo depois do fim. - Seu timbre de voz permaneceu o mesmo. Misterioso, calmo e suave. Mas suas mascara se transformou numa estranha carranca com chifres, em uma expressão de fúria. Segurei firme e tentei me manter inabalável, embora minha respiração ofegante jogasse por terra todos os meus esforços. — Eu sou um simples barqueiro, se é isso que deseja saber. Como ou quando morreu, não me interessa nem um pouco. Meu trabalho é apenas realizar a travessia. Porém, me envaidece saber que me confunde com algo tão superior e poético.


Contudo, temo ter que afirmar que está sendo completamente tolo. Você é apenas um grão, que completa um todo. Sua existência é primordial enquanto pessoa no seu caráter singular. Porém, aqui, você está passando por uma simples reciclagem. Não ouse pensar que pode fazer o que quer, tão pouco que possui algum poder. Em sua condição atual, você e o nada compartilham da mesma definição. Você não sente mais a agonia que outrora corroía cada pedacinho podre do seu corpo, pois a partir do momento que subiu em meu barco, todo o seu vinculo essencial com o que chamamos de humanidade, é perdido. Por mais que você tenha medo de mim neste momento, que seu corpo esteja tremendo e que a verdade lhe assuste a medida que é revelada, ainda é um sentimento artificial, criado pela atmosfera em que estamos. Presumo que já se descobriu no meio de um sonho, porém mesmo assim, uma faca afiada ainda parecia bem perigosa para você, não é mesmo?

O barqueiro ficou em silêncio e deu uma ultima remada, desta vez mais forte, fazendo o barco navegar sobre a força de um impulso ao qual duvidava ser fisicamente possível. Sem remar, mas com o barco ainda em movimento, usou uma das mãos e passou frente a mascara, novamente ocorrendo a metamorfose, transformando-a novamente em uma face inexpressiva. — Você não possui mais vontade. Neste momento, não é alguém. É simplesmente algo. E sendo assm, não possui independência alguma de contestar o seu destino. Você pode pensar em levantar, em se jogar no rio, em me golpear, mas continuará bem ai aonde está. — Segurou novamente em seu remo, com firmeza e voltou a remar, fitando o horizonte como se enxergasse algo além do fim.


Não há nenhum ser fantasioso segurando tridentes para lhe espetar, tão pouco será punido por toda a eternidade. Seria ilógico, insensato e injusto. E justiça é uma criação humana. Você será submetido apenas a tudo aquilo que você plantou ainda em vida. Não existe certo ou errado, quando se trata de manter o equilíbrio. Enquanto vivo, existe apenas o dádiva suprema do livre arbítrio, ao qual diante de todo o complexo sistema de caminhos a seguir baseados em situações, cenários e imposições, é você quem define o que você é o que irá plantar. Você fez um papel no equilíbrio, sendo a criatura vil e mesquinha que foi. Contribuiu com a dor, a tristeza, o sofrimento. Sentimentos nobres e legítimos, tão necessário ao ser humano quanto a alegria e a felicidade. O que chama de punição, será apenas sentir rasgando em sua pele, todo o mal que ajudou a consolidar. A floresta que fitou, nada mais é que um reflexo metafórico da sua alma. Os uivos, a besta, o medo e a agonia, são apenas reflexos daquilo que causou e que te espera. Por mais que meu discurso pareça cético, não se engane. O inferno existe, assim como o diabo. E não há como fugir, nem como se esconder.


O barco finalmente parou. O barqueiro puxou seu remo para dentro do barco e pela primeira vez o largou. Sua face mudou pela ultima vez, por fim, adotando uma expressão ambígua. Metade de sua mascara era sorriso e a outra metade era tristeza. Ele não precisou dizer a frase, para que eu sentisse um ultimo calafrio. Enfim, havíamos chegado ao destino. Após ouvir tudo que ele possuía a me dizer, em uma sensação de êxtase e euforia, eu finalmente encontrei aquilo que tanto busquei em pensamento. Uma sensação peculiar surgiu dentro de mim, o êxtase de finalmente possuir a pergunta chave que tanto busquei, como também uma tristeza profunda, por já deduzir a resposta. De qualquer forma, eu era apenas algo, não alguém, e desta forma, me vi fazendo a tão aguardada pergunta.


O diabo existe, assim como o inferno. Nossa definição pode ser fantasiosa, como é típico da natureza humana, mas presumo que a verdade seja minimalista em seu conceito mais complexo. Lamentei.
Eu ajudei a fermentar o caos. Eu trouxe a desgraça para muitas vidas. Manipulei e desconstruí, por toda a minha vida, pequei e sussurrei pecados. E agora estou sendo enviado para o inferno que eu mesmo ajudei a criar. Um lugar com dor, com o caos, com tragédias e sofrimento. Onde nossa alma chora, nosso espírito é destruído em provações as vezes maiores do que possamos suportar. Porém, existe ai, um ponto chave que resolve todo o enigma. Diria que incoerência, sendo esta, uma palavra que não faz jus ao ponto que quero chegar, mas que o meu simples vocabulário me permite alcançar. Para que eu seja “punido”, para que meu espírito sangre, para que eu sofra, eu preciso de algo que neste momento não faz parte de minha condição. Algo maior. Para que eu desfrute de toda a dor eu…


- Sim! Você precisa estar vivo. — Completou o barqueiro, com um sorriso em sua voz.




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