domingo, 30 de outubro de 2016

[Mini conto] A porta ao lado.


A porta ao lado.



(Nota: Feito pelo celular)




As luzes estavam apagadas. O silêncio incomum era perturbador e algumas poucas velas iluminavam aquilo que não deveria ser visto.
O ritual já estava em seus últimos detalhes, embora o intuito fosse misterioso. Cuidadosa, ela se esgueirou pelos cantos escuros como uma sombra, sussurrando frases profanas e coletando vidas entre um corte e outro. Mas faltava o último sacrifício. Seguiu rodopiando por todo o centro do seu espetáculo macabro, cantarolando louvores a Lúcifer, seu senhor. Até que com seus pés sujos e descalços, caminhou três passos a mais, parando frente a um pequeno altar. Seus olhos pediam por sangue e seu sorriso desenhava a total falta de empatia e remorso. Abriu vagarosamente a boca e deslizou a língua por cada centímetro dos seus lábios.  Respirou fundo e saboreou o cheiro da dor e o prazer sádico, quase erótico, por trás do ato. 


domingo, 17 de julho de 2016

[Contos]                 Clarice


Clarice



Por um instante, Clarice jurou ouvir a maçaneta girar e a porta se abrir num ranger doloroso. Seu olhar se perdeu, seu corpo se retraiu e pegou-se vagando nos próprios pesadelos. - “Ele chegou. Ele tá aqui!” -
Pensou bem baixinho, com medo que mesmo em pensamento ele pudesse ouvi-la. Levou a mão a boca, se auto-censurando e tentou imaginar no que faria a seguir, baseado num extinto de sobrevivência falho. - “Não importa o tamanho do diabo, é seu dever servi-lo” - Eram as palavras da sua mãe. Enxergava nela um exemplo de força, de luta, de sobrevivência. Mas infelizmente, não era como ela. Clarice era definida como fraca, medrosa e freqüentemente queria apenas mergulhar em sua cama e chorar por não ser capaz de cumprir com seu papel. Mas quando se está no inferno, não existe um local seguro. Não existe choro que não possa ser escutado, transgressão que não possa ser punida. Era como se fosse sufocada pela angústia, sem ter pra onde correr ou onde se esconder.



A porta de fato se abriu. Mas não num ranger doloroso, como imaginou. Ela recebeu um tranco, se mantendo ainda trancada. A maçaneta girou algumas vezes, e novamente a porta foi forçada, até que finalmente cedeu e abriu. - “ Eu sei que você está comigo hoje. Eu sinto você. Eu rezei por isso. Porque não me ajuda? Porque apenas fica aqui, a observar? Eu preciso muito… muito de você. Por favor…” - Pensou imediatamente ao ver que o diabo estava agora em sua casa. De posse do seu corpo, da sua alma. Se ergueu e o encarou, olho no olho, reunindo o pouco de força e coragem que possuía, mas que era destruída dia após dia. Respirou fundo. Lá estava ele. Frente a porta, sujo, fedendo a álcool e com o cabelo desgrenhado. - “O diabo tem muitas formas” - Era o que sua mãe dizia. - “Feio ou bonito, você terá o que você merece. Não deve lhe negar submissão.” - Tais palavras pareceram nunca entrar completamente na sua cabeça. Como poderia ser socialmente aceito entre os seus, entregar-se como uma oferenda a uma vida de servidão? Renegando sua própria existência em pról de uma missão de origem secular desconhecida. Mas com o curto espaço de tempo que passou com conjecturas sobre o seu calvário, lá estava ele, veloz e sorrateiro, deslizando para trás do seu corpo e descendo uma das mãos enrugadas até entre suas pernas e deixando o hálito quente e alcoolizado entorpecer os seus sentidos enquanto a barba mal feita roçava em sua nuca

sábado, 21 de março de 2015

[Mini conto]                 Apenas uma imagem.

Apenas uma imagem.

O céu estava coberto de cinza. Melancólico e quieto, despejando uma fina garoa sobre a cidade, que partilhava do mesmo tom sem vida, numa tela real pintada nos mínimos detalhes inerentes a mediocridade humana. Prédios cinzas, carros parados, fumaça negra. Um vai e vem de pessoas insatisfeitas, descoloridas de alma, sem um propósito. Dentro de um beco, ela, que jurou amor ao seu companheiro, estava nos braços de um cafajeste qualquer. Ela o amava, mas estava molhada e naquele instante, era o que importava. A chuva fraca continuava a cair, assim como a dignidade humana se dissipava a cada centímetro a mais que a mão recebia o convite a entrar dentro daquela calcinha.

No canto inferior direito da pintura, quase no rodapé, um detalhe minúsculo, um universo distinto. Um rato molhado, se esgueirando pela beira da rua. Não conseguira alimento, então uniu-se ao cinza e permaneceu invisível. Correu até entrar em seu bueiro. Não tão longe, um caso parecido. Molhado, camuflado em trapos cinzas que o tornava invisível a sociedade, também estava faminto. Mas não havia alimento. Era difícil decifrar em seus olhos pesarosos qual pensamento vagava por sua mente, mas dentre tantos pensamento enigmáticos, pensara bastante no que tinha feito. Expulso do trabalho e expulso de casa, como um rato. As coincidências eram infinitas, considerando que o observador prestasse a atenção na obra prima diante de seus olhos.

Não obstante apenas de apelo visual, bastava fechar os olhos para apreciar os ruídos dos motores ou os gritos impacientes das buzinas. Caso prestasse ainda mais a atenção aos detalhes da obra, poderia notar sons mais peculiares como um copo se quebrando, o som estalado de um tapa sempre negligenciado, um choro reprimido, e principalmente o medo. Caso este fizesse um som característico, ela estaria gritando. Mas o medo é silencioso. E assim, permaneceu calada, renegando a sua auto-estima e dando continuidade a sinfonia. Dia após dia.

Era apenas uma tela. Um retrato da vida real, onde cada pincelada contava uma história tão complexa quanto o próprio sentido da vida. Uma imagem singular aos olhos leigos, mas infinitamente rica em interpretação e sentimento, caso um olhar dotado de grande sensibilidade possua o dom de decifrar cada história em sua individualidade. Similares em desgraças, na dor e na falta de perspectiva. A chuva continuava a cair. Tão fraca e tão fina, que poderia afirmar talvez por um momento que eram lágrimas.

sábado, 24 de janeiro de 2015

[Contos]                 Sonata simples.

Sonata simples


Intenso, ofegante, mergulhado num êxtase de sensações inexplicáveis que faziam minha cabeça girar e meu sangue ferver. Pela primeira vez, após o fatídico acidente, meu eu fora dominado de forma avassaladora por um estado lirico caótico, e ao mesmo tempo, belo. A lógica me parecia tão mesquinha, raciocinar soava tão tolo.

Pois foi com os pés descalços, tocando a lama fresca da noite chuvosa, que parti em direção a ela. Poderia citar mil e uma analogias, porém, nada poderia defender com fiel justiça a forma como me sinto quando olhando em seus olhos. O jeito como faz meu coração pulsar, meu corpo estremecer e meus dentes rangerem. Minha existência se resume a simples contemplação da beleza inalcançável. Porém, não hoje.

Silencioso, veloz, me esgueirando pelas sombras, coloquei-me frente a sua porta. Tenho a total ciencia de que não estava devidamente apresentável. Meu cabelo desgrenhado, meu corpo molhado coberto por alguns trapos rasgados, meus pés mergulhados na lama. Em minha face, o peso dos anos de miséria. Pensei em bater, mas temi por sua reação. Sofri as dores de uma rejeição antecipada, e por um segundo, pensei em desistir. Mas não poderia. Não hoje. O palco estava armado. O céu, a estrela e a lua. Sim a lua. Imponente, inexorável em sua posição de rainha da noite. Tão bela, tão inalcançável, assim como você. Minhas duas paixões em uma unica noite, um único momento.


sábado, 15 de novembro de 2014

[Contos]                  Adeus e Obrigada.

Adeus e Obrigada.


Finalmente o fim estava próximo. Uma cozinha vazia, paredes riscadas com pedidos de socorro de uma alma abraçada por espinhos. Uma música ecoava baixinho, sendo a única que compreendia e partilhava de um sentimento tão profundo como o da angústia. Os lábios rosados e pequenos, do tipo moldado para ser beijado, se moviam delicadamente cantarolando quase aos sussurros cada verso, com lágrimas em seus olhos castanhos. — "Oh death, come near me... be the one, for me... be the one, the one, who staays..." —

Chovia fino lá fora, mas não o suficiente para lavar a alma e carregar a sua dor para longe. Uma vez que estava pronta, se entregou ao seu destino e chorou tudo o que tinha, sentiu tudo o que podia, jogou-se no colo da solidão como se fosse a única que pudesse envolvê-la num último brilho de compreensão, e a ela, ofereceu sua vida. — "My rivers are frozen, aand mischosen, and the shadows, around me, sickens my hearth. "

Não havia motivos fortes o suficiente para impedir que fosse feito. O peso em suas costas, a dor em seu coração e o vazio em sua alma culminaram naquilo que considerou como a única coisa boa que ganhara na vida. Porém, apertou-lhe o coração imaginar que finalmente chegaria a hora da despedida. A ideia de abandoná-la em um mundo cruel e mesquinho a aterrorizava. Porém, não tinha mais forças para lutar. Queria ser forte, imaginou-se dando a volta por cima, idealizou que poderia se reerguer, mas aí veio a dor. E entre um corte e outro, lembrou-se de ser uma inútil. Incapaz de fazer qualquer coisa que pudesse se orgulhar. Sem espaço no mundo, dentro de quatro paredes que isolavam sua insignificância.