domingo, 17 de julho de 2016

[Contos]                 Clarice


Clarice



Por um instante, Clarice jurou ouvir a maçaneta girar e a porta se abrir num ranger doloroso. Seu olhar se perdeu, seu corpo se retraiu e pegou-se vagando nos próprios pesadelos. - “Ele chegou. Ele tá aqui!” -
Pensou bem baixinho, com medo que mesmo em pensamento ele pudesse ouvi-la. Levou a mão a boca, se auto-censurando e tentou imaginar no que faria a seguir, baseado num extinto de sobrevivência falho. - “Não importa o tamanho do diabo, é seu dever servi-lo” - Eram as palavras da sua mãe. Enxergava nela um exemplo de força, de luta, de sobrevivência. Mas infelizmente, não era como ela. Clarice era definida como fraca, medrosa e freqüentemente queria apenas mergulhar em sua cama e chorar por não ser capaz de cumprir com seu papel. Mas quando se está no inferno, não existe um local seguro. Não existe choro que não possa ser escutado, transgressão que não possa ser punida. Era como se fosse sufocada pela angústia, sem ter pra onde correr ou onde se esconder.



A porta de fato se abriu. Mas não num ranger doloroso, como imaginou. Ela recebeu um tranco, se mantendo ainda trancada. A maçaneta girou algumas vezes, e novamente a porta foi forçada, até que finalmente cedeu e abriu. - “ Eu sei que você está comigo hoje. Eu sinto você. Eu rezei por isso. Porque não me ajuda? Porque apenas fica aqui, a observar? Eu preciso muito… muito de você. Por favor…” - Pensou imediatamente ao ver que o diabo estava agora em sua casa. De posse do seu corpo, da sua alma. Se ergueu e o encarou, olho no olho, reunindo o pouco de força e coragem que possuía, mas que era destruída dia após dia. Respirou fundo. Lá estava ele. Frente a porta, sujo, fedendo a álcool e com o cabelo desgrenhado. - “O diabo tem muitas formas” - Era o que sua mãe dizia. - “Feio ou bonito, você terá o que você merece. Não deve lhe negar submissão.” - Tais palavras pareceram nunca entrar completamente na sua cabeça. Como poderia ser socialmente aceito entre os seus, entregar-se como uma oferenda a uma vida de servidão? Renegando sua própria existência em pról de uma missão de origem secular desconhecida. Mas com o curto espaço de tempo que passou com conjecturas sobre o seu calvário, lá estava ele, veloz e sorrateiro, deslizando para trás do seu corpo e descendo uma das mãos enrugadas até entre suas pernas e deixando o hálito quente e alcoolizado entorpecer os seus sentidos enquanto a barba mal feita roçava em sua nuca




- Preciso descarregar o estresse hoje. Fica quietinha e deixa o papai se divertir, ta bem? - Ele possuía quase o dobro da sua idade, mas isso não era problema. Seu corpo era flácido e cheio de pelos, mas pra coisas como ele, não haviam padrões. E de forma impetuosa, ele girou o corpo de Clarice, a segurando pelo braço, e invadiu a sua boca com um beijo que a fez se contorcer. Fechou os olhos, não por ser o costume, mas porque não queria vivênciar o pesadelo que mais uma vez se tornava real. Mas deixar-se na mãos dos demais sentidos fora pior. Sem a visão, se sentia cada vez mais violada de acordo com que a mão avançava, sem delicadeza, sem permissão. Sem a visão, sentiu o corpo dele a engolindo. Tomando pra si num abraço sufocante, como se fosse um objeto de prazer. Cega, sentiu a língua dele invadir a sua boca, e nesse instante, as palavras antes proferidas vieram novamente a tona. - “ Fica quietinha, deixa o papai se divertir” - Tal sentença ecoou inúmeras vezes em sua mente, até que seu corpo, detentor das próprias regras, reagiu, trazendo um refluxo que a fez vomitar, dando apenas tempo para empurra-lo para trás.

- Mas que… Mas que porra é essa?! - Sua expressão agora se configurava no que Clarice considerava o mais puro terror. Ela sabia onde a noite iria terminar e isso a levou aos prantos. Esperançosa por um dia atípico, estava previamente maquiada e vestia um vestido de renda feito por sua mãe antes de falecer, como presente de casamento. Acabará de completar 27 anos naquele dia. Pensou, por algumas horas, que ele se lembraria. Não se iludiu com uma suposta esperança de um dia feliz, contudo, se deu por satisfeita e regozijou por algumas horas pela simples ideia de um dia de paz. Estava tudo arruinado. - “Porque fez isso, idiota?! Agora ele vai te odiar! E com razão!” - Com as mãos tremendo, Clarice conseguia ouvir a voz da sua mãe ecoando em todos os cantos da sua mente. - “Eu… eu não queria. É que..” - tentou se justificar - “Você nunca quer, não é mesmo? Nunca mereceu, nunca é culpa sua! Me poupe desse seu vitimismo barato e vá limpa-lo, já!” - A sentença terminou num grito que trouxe Clarice de volta a realidade. - Mas que… Mas que porra é essa?! - teve a impressão de um dejavu.



Você me sujou todo, sua vagabunda! - Levantou enérgico, já afastando a mesinha do centro da sala. - Era isso que queria desde o inicio, não era? Acha que eu não percebi essa maquiagem de puta?!- Num piscar de olhos, já estava frente a Clarice, com a mão firme e pesada em seu pescoço. - Se não é pra ser a minha puta, você anda sendo a putinha de quem, hein?! Diz, caralho. Fala logo pra quem anda ficando de quatro enquanto eu tô no trabalho sustentando uma vadia como você! - Sua mão era mais pesada do que imaginava. Dia após dia, mesmo sendo recorrente, sempre ficava surpresa com a força aplicada sobre ela. Sempre imaginava que neste dia, iria morrer. Uma única lágrima solitária desceu por um dos seus olhos castanhos. - “Porque você está apenas acompanhando? Por favor, me ajude, faça algo. Eu sei que você pode… não espere pra ver como isso vai terminar, por favor, interceda por mim. Por favor…” -

A mão se apertava ainda mais em seu pescoço, fazendo Clarice começar a ter problemas com a respiração. Seu corpo começou a tremer involuntariamente e seus olhos a se revirarem. Mas ele não era um assassino. Era algo pior. Era um canalha, um adultero, um hipócrita, um opressor. Um aglomerado de adjetivos de pesos variados, dependendo da manobra aplicada para julgamento dos mesmos. Mas apesar disso tudo, ele não era um assassino. Ao menos, não ainda. Quando viu que Clarice estava prestes a desmaiar, a soltou, empurrando-a para trás. Ela, por sua vez, começou a tossir freneticamente, tentando recuperar o fôlego e assustada com o quão perto chegou da morte. - “Só mais um pouco… só mais um pouco e estaria tudo acabado. Eu estaria livre” - Concluiu. - “Menina tola! Você acha que vai se livrar do diabo dessa forma? A morte, em muitos casos, é a salvação da alma. Você realmente achou que não seria punida? Seu inferno é na terra. Você pertence a ele. Ele não vai se livrar de você. E de qualquer forma, menina, você já está morta. Você me envergonha. Destruiu toda a educação que te dei, e agora se encontra nesse estado. Pecadora, entregue a porta sorte. Rezo para que ele seja misericordioso.” -



Após alguns breves segundos de respiração intensa, Clarice recobrou o folego. Voltou a realidade. - “Eu… Eu não queria. A maquiagem era pro meu - Antes que pudesse terminar, seu rosto foi atingido por um tapa tão forte que a empurrou para trás. Queria pensar que teve sorte em não ter sido um soco. Custaria-lhe uns dentes. Mas ardia tanto e se sentia tão envergonhada, que tal pensamento não a confortava. - Pro seu o que? Pro seu cafetão?! - A pegou pelo braço e começou a arrasta-la pela sala, em direção ao quarto. Esbravejava xingamentos de todos os tipos, amaldiçoava. Clarice por sua vez, rendida, aos prantos e quebrada, não tinha mais forças para lutar. - “Me diz, onde você quer chegar com isso? Porque você não faz nada? Eu simplesmente… eu não entendo. Porque? - Chorava copiosamente. A medida que era arrastada para o quarto, era como se fosse arrastada para o próprio inferno. Clarice tinha noção dos terrores que a aguardavam. Perda da auto-estima, perda da dignidade, perderia saúde, perderia um pouquinho da sanidade, perderia um pedacinho a mais da Clarice. Dia após dia. - “Não seja tola menina. A pessoa não se importa. Ninguém se importa com você ou com seu destino. Sua vida é simplesmente uma história digna de pena, de lamentos. Digna de alguns minutos de atenção. Mas a pagina não vira, pelo contrário. Um ponto final será dado. E nos dias seguintes, assim como nos anteriores, você estará novamente completamente sozinha. Eu rezo por você, minha menina. Rezo para que um dia você me faça companhia. Como o anjo que é. Eu sempre admirei o seu espírito de guerreira. De luta, de quem não se rende. De quem não se curva. Você é mais forte do que eu jamais fui. E eu sabia que isso seria a sua perdição. Eu fiz o que pude, tentei te educar, tentei fazer com que entende-se que esse mundo não foi feito para a gente. Mas você lutou, você resistiu. E eu me orgulho de você por issso. Ao mesmo tempo, que choro. Choro por saber que sua doçura, sua esperança, sua inocência, é a sua perdição. Você estará sozinha agora, meu anjo. Mas não perca a fé em você. O mundo não se importa com as vitimas. No mundo dos homens, apenas Clarice poderá salvar Clarice.” - Assim que ele terminou de arrasta-la para dentro do quarto, a porta bateu, se trancando em seguida. A partir de agora, Clarice estará novamente só.

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