sábado, 21 de março de 2015

[Mini conto]                 Apenas uma imagem.

Apenas uma imagem.

O céu estava coberto de cinza. Melancólico e quieto, despejando uma fina garoa sobre a cidade, que partilhava do mesmo tom sem vida, numa tela real pintada nos mínimos detalhes inerentes a mediocridade humana. Prédios cinzas, carros parados, fumaça negra. Um vai e vem de pessoas insatisfeitas, descoloridas de alma, sem um propósito. Dentro de um beco, ela, que jurou amor ao seu companheiro, estava nos braços de um cafajeste qualquer. Ela o amava, mas estava molhada e naquele instante, era o que importava. A chuva fraca continuava a cair, assim como a dignidade humana se dissipava a cada centímetro a mais que a mão recebia o convite a entrar dentro daquela calcinha.

No canto inferior direito da pintura, quase no rodapé, um detalhe minúsculo, um universo distinto. Um rato molhado, se esgueirando pela beira da rua. Não conseguira alimento, então uniu-se ao cinza e permaneceu invisível. Correu até entrar em seu bueiro. Não tão longe, um caso parecido. Molhado, camuflado em trapos cinzas que o tornava invisível a sociedade, também estava faminto. Mas não havia alimento. Era difícil decifrar em seus olhos pesarosos qual pensamento vagava por sua mente, mas dentre tantos pensamento enigmáticos, pensara bastante no que tinha feito. Expulso do trabalho e expulso de casa, como um rato. As coincidências eram infinitas, considerando que o observador prestasse a atenção na obra prima diante de seus olhos.

Não obstante apenas de apelo visual, bastava fechar os olhos para apreciar os ruídos dos motores ou os gritos impacientes das buzinas. Caso prestasse ainda mais a atenção aos detalhes da obra, poderia notar sons mais peculiares como um copo se quebrando, o som estalado de um tapa sempre negligenciado, um choro reprimido, e principalmente o medo. Caso este fizesse um som característico, ela estaria gritando. Mas o medo é silencioso. E assim, permaneceu calada, renegando a sua auto-estima e dando continuidade a sinfonia. Dia após dia.

Era apenas uma tela. Um retrato da vida real, onde cada pincelada contava uma história tão complexa quanto o próprio sentido da vida. Uma imagem singular aos olhos leigos, mas infinitamente rica em interpretação e sentimento, caso um olhar dotado de grande sensibilidade possua o dom de decifrar cada história em sua individualidade. Similares em desgraças, na dor e na falta de perspectiva. A chuva continuava a cair. Tão fraca e tão fina, que poderia afirmar talvez por um momento que eram lágrimas.

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