sábado, 24 de janeiro de 2015

[Contos]                 Sonata simples.

Sonata simples


Intenso, ofegante, mergulhado num êxtase de sensações inexplicáveis que faziam minha cabeça girar e meu sangue ferver. Pela primeira vez, após o fatídico acidente, meu eu fora dominado de forma avassaladora por um estado lirico caótico, e ao mesmo tempo, belo. A lógica me parecia tão mesquinha, raciocinar soava tão tolo.

Pois foi com os pés descalços, tocando a lama fresca da noite chuvosa, que parti em direção a ela. Poderia citar mil e uma analogias, porém, nada poderia defender com fiel justiça a forma como me sinto quando olhando em seus olhos. O jeito como faz meu coração pulsar, meu corpo estremecer e meus dentes rangerem. Minha existência se resume a simples contemplação da beleza inalcançável. Porém, não hoje.

Silencioso, veloz, me esgueirando pelas sombras, coloquei-me frente a sua porta. Tenho a total ciencia de que não estava devidamente apresentável. Meu cabelo desgrenhado, meu corpo molhado coberto por alguns trapos rasgados, meus pés mergulhados na lama. Em minha face, o peso dos anos de miséria. Pensei em bater, mas temi por sua reação. Sofri as dores de uma rejeição antecipada, e por um segundo, pensei em desistir. Mas não poderia. Não hoje. O palco estava armado. O céu, a estrela e a lua. Sim a lua. Imponente, inexorável em sua posição de rainha da noite. Tão bela, tão inalcançável, assim como você. Minhas duas paixões em uma unica noite, um único momento.




Bati três vezes em sua porta, até que finalmente ela se abriu. Nesse momento, tudo parou. Meu coração desacelerou até o nada, e voltou a bater com toda a intensidade. Havia ensaiado esse momento inúmeras vezes. A melhor forma de dizer que te amo. A maneira perfeita de consumir nossa relação em seu primeiro dia. Voltei a ficar ofegante, assim como meu corpo começou a tremer. Meus dentes rangiam e da minha boca, apenas sons incompreensíveis. Eu assumo que compreendo o seu pavor, a seu olhar de asco. Mas você iria compreender quando eu finalmente me declarasse.

Antes que recuasse, agarrei no seu braço ainda que de forma menos delicada do que planejei. Minha boca estava seca, as palavras não saiam, então restou a mim virar para trás e apontar-lhe a lua. "Veja só, como é bela, meu amor" Pensei. Queria dizer. Juro que diria.

Mas todo o momento fora interrompido por um grito que misturava dor e pavor. A olhei novamente e minhas unhas se afundavam em sua pele branca, tingindo-a de vermelho em cinco grandes buracos que penetravam a carne. Olhei em seus olhos e vi o terror. - Se acalme, olhe, é linda. Não acha?!
- Tentei sorrir e a medida que meus lábios se arquearam. Meus dentes começaram a cair um a um, enquanto meu maxilar estalava num ruido de agonia, se deslocando, quebrando, e se refazendo. Meus nariz sangrava e meu corpo se contorcia a cada estalar de ossos que ia aos poucos se quebrando, dando lugar a uma nova condição vertebrada.

A segurei com mais força, temendo que fugisse de mim, do nosso momento. Um pouco de força apenas, mas o suficiente para quebrar seu braço numa fratura exposta. Ela gritou. Não sabia definir se era medo, dor, ou felicidade. Tentei decifrar olhando-a dentro dos olhos. São a janela da alma, dizem. Então meus olhos se encontraram com os dela. - Sou eu amor -, pensei em dizer. Mas perdi meu folego a medida que meu focinho se alongou e novas presas saíram rasgando a gengiva, afiadas e feitas para dilacerar. - Vou sorrir -, sera melhor assim. E abri a bocarra repleta de dentes e saliva que pingava interminavelmente. Mas apenas consegui um novo grito. Fiquei assustado, estava perdendo a minha amada. Ela iria me rejeitar. Era hora da cartada final. - Um beijo, é tudo que eu quero -, pensei em dizer. E a beijei. Meu focinho lupino avançou, meus dentes cravaram em seu rosto, se apertaram contra a carne e então, movi os "lábios" num beijo digno de um cavalheiro. Por um momento, pensei estar fazendo errado. De uma forma estranha, parecia um mastigar. Mas percebi que finalmente ela havia parado de gritar. Seu corpo finalmente relaxou e pela primeira vez me senti aceito. Assim que a larguei, seu corpo foi de encontro ao chão. Ali, em frente sua casa. - Seria minha deusa um tanto depravada? - Não seria eu quem iria julgar. Dois amantes, numa noite de amor. Não poderia ser melhor. Mas por uma ultima vez, quis ser novamente romântico. Inclinei brevemente o meu corpo e olhei para a lua. - Eu te amo! -

Finalmente! A declaração fora feita, minha amada era minha. Minha voz ecoou por toda a vila. A partir de hoje, todos saberiam do meu amor. Porém, uma confusão surgiu em minha mente ao jurar que minha voz teria soado como um grande uivo. Mas provavelmente era coisa da minha cabeça.

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