segunda-feira, 28 de outubro de 2013

[Contos] Somnium – A fronteira com a realidade




Os olhos finalmente se abrem. O início do fim começara a partir do momento em que as pálpebras se afastaram lentamente uma das outras. Um despertar lento e confuso. As pupilas por sua vez, naturalmente deveriam se dilatar, devido a luminosidade provida da única janela existente em seu quarto, mas estranhamente, não foi o que o aconteceu.
Ao abrir os olhos, Rose sentiu um calafrio estranho percorrer seu corpo. Instintivamente, achara que havia dormido o suficiente para fitar o brilho do sol entrar pelas persianas ao lado esquerdo de sua cama de solteiro, porém, a escuridão permanecia insoluta. Seus olhos piscaram um pouco mais, em busca de uma visão mais nítida de seu quarto, que desta vez, parecia mais escuro do que o normal. Com sua pouca visão, enxergava apenas o tronco deu seu corpo pequeno, que vestia uma camisola branca com bordados florido, tipicamente infantil. Embora tivesse em seus 12 anos de idade, Rose se apegara a detalhes de uma infância que nunca possuiu. Mesmo não conseguindo enxergar, a janela estava entre aberta, possibilitando que o vento cortante, típico do inverno rigoroso lhe tocasse as pernas, desprotegidas, subidas devagar pela borda da camisola que parecia dançar ao som do vento. Fato este que mais lhe incomodava.

Não era o frio em si, mas sim a escuridão e o assobio agudo que o vento fazia ao entrar em seu quarto. Estremecia, e o que mais a perturbava era que o toque gelado provido da brisa noturna, fantasiava em sua mente infantil um toque estranho. Algo inexplicável, e por mais que soubesse ser uma simples brisa potencializada pelo sereno noturno, em um momento de total escuridão como se encontrava, não poderia deixar de imaginar as situações mais comuns de seus constantes pesadelos.

Não era o vento que a tocava entre as pernas e lhe causava calafrios. Era algo mais profundo, mais sinistro. Não conseguia caracterizar ainda como um ser concreto, mas sentia como uma presença. De alguma forma, percebera que não estava sozinha em seu quarto. Seu corpo ainda passando por mudanças estremeceu diante da hipótese levantada. De forma quase inaudível, gemeu baixinho, na primeira demonstração de medo desde que abriu os olhos. A escuridão ainda era intensa e inabalável. Comparável apenas ao negro de seus olhos, assim como de seus longos cabelos. Uma tonalidade tida como fúnebre, devido a sua pele demasiadamente alva. Mesmo tentando olhar ao redor, Rose só conseguia enxergar seu tronco, onde após alguns segundos de insistência, percebera algo que até então passou despercebido. Grande parte da causa do frio era devido ao seu cobertor ter desaparecido e ao constatar esse fato, suas pupilas não se dilataram como queria a principio, porém seus olhos se arregalaram de forma que apenas as crianças podiam demonstrar. Um medo latente, que em suma, fazia a grande maioria buscar abrigo na cama de seus pais. Um abrigo forte, seguro, quente e intransponível para qualquer bicho papão.

Infelizmente para Rose, não existia esse refugio. Mesmo o quarto de seus pais estando logo após o corredor, na porta a direita, ir até o mesmo nunca foi uma opção. Por diversas vezes, acordou a noite, procurando conforto de uma cama quente, porém, a única coisa que encontrava era uma porta trancada. Cuja fechadura fora especialmente feita para que fosse liberada apenas por fora. O que acontecia apenas após as 8:00. Ela estava sozinha, e nesta solidão, aprendeu a ter em seu cobertor um conforto alternativo, que a livraria de todo o mal enquanto estivesse oculta e abraçada ao mesmo. Curiosamente, ela o chamava de Teddy, devido ao bordado de um ursinho em seu centro. Sua figura paterna.

Mas Teddy não estava lá, e por mais que fosse apenas um cobertor, cogitara por um momento que o mesmo havia lhe abandonado, ou que algo de pior poderia ter acontecido. O medo tomava conta, junto a preocupação. O vento insistente continuava a lhe tocar as pernas e por fim, o silencio foi quebrado. Sua voz fraca ecoou pelo quarto em um pedido, mas em seu âmago, era considerada uma suplica.

Teddy? Você... Está aí? Tem... Tem alguém ai? — Perguntou de forma retórica ainda com um certo receio

Por mais que sua curiosidade mesclada ao medo a impulsionasse para a pergunta, não esperava ouvir nenhuma resposta. O que talvez a tranquilizaria um pouco mais. Porém, houve uma resposta. Ao menos não humana. Imediatamente após sua pergunta, ouviu um barulho singular do lado esquerdo de sua cama. Os galhos de uma árvore próxima batiam na janela de forma compassada e incessante, que pareciam responder ao seu chamado. A partir daí, estranhamente a visão sobre lado esquerdo do quarto de Rose ficou mais clara. De sua cama, conseguiu ver a origem do som, ou melhor, apenas a silhueta de galhos retorcidos arranhando sua janela com pequenas investidas que transpassam a janela. Rose era apenas uma criança e em seus olhos, o galho pareciam ter vida, assim como a brisa que a tocava e aquele apito agudo do vento. Tudo parecia uma única coisa ruim. Uma única força ao qual começara a culpar pelo sumiço de Teddy.

O que ta acontecendo? Cadê o Teddy? Alguém... Me diz.

Suas palavras ainda eram abafadas pelo medo. Não sabia ao certo se pedia ajuda, ou se se ocultava no silêncio, esperando que a coisa a deixasse em paz. Eram decisões difíceis, mas que ficaram em segundo plano por hora. Algo desviou a atenção de Rose, e foi novamente um som singular. Desta vez, ela sabia bem do que se tratava. O barulho das gotas caindo com certa força, indicava que havia começado a chover. Tentando se proteger, mordeu os lábios rosados com delicadeza, pois em um determinado ponto, entre um barulho e outro, começou a temer o pior. A temer que realmente houvesse algo ali, e só então percebeu algo que a colocou em estado de frenesi.

Durante os 15 minutos após os olhos se abrirem, Rose apenas percebeu a tudo ao seu redor de forma passiva. Era uma espectadora do seu próprio show de horrores, onde presumia ser a participante principal. Responsável pelos gritos desesperados, tal como vira uma única vez durante um filme de terror que lhe rendeu pesadelos por uma semana inteira. Após tanto tentar observar ao redor, não percebera de algo que estava muito próximo. A proximidade era tanta, que um forte calafrio tomou-lhe todo o corpo e voltou a morder os lábios pequeno, deixando escorrer um pequenino filete de sangue, feito por um corte totalmente superficial sobre o lábio inferior. Seus braços estavam presos. Não sabia pelo que, nem como, mas salvo uma pequena liberdade de movimentos, todos os membros tinham seus movimentos obstruídos por algo que a segurava pelos pulsos. Desesperada, tentou olhar ao redor, mas não enxergava praticamente nada. Apenas seu tronco e a visão para a janela. A medida que seu desespero aumentava, os galhos aumentavam o ritmo do bater na janela. Se não fosse uma hipótese surreal, e ela fosse um pouco mais velha, iria supor que tais acompanhavam e ditavam a intensidade do seu medo. Tentou mover os braços mais uma vez e mesmo tendo sucesso, em certo ponto, eles travavam. Aos poucos se sentia cada vez mais fraca, indefesa e sozinha. Era a coisa, e estava a dominando. Sentia que ela a segurava para que não pudesse fugir que manterá sua visão turva, para não enxergar a saída. E fazia aqueles sons tenebrosos de forma a apavora-la.

Eu... Eu não quero ser machucada. Por favor. Quem esta ai? Isso não tem graça. Eu... Eu... — Tentou continuar a tentativa de contato, mas foi interrompida pelo choro.

Lágrimas geladas escorriam por seus olhos, chegando até os lábios, que involuntariamente, provavam do gosto ligeiramente salgado. Tudo pareceria um terrível pesadelo para Rose, caso ela não soubesse que estava acordada. Infelizmente, estava acordada e isso concluía que por mais fantasiosa que fossem suas interpretações, uma era extremamente solida. Ela estava presa e isso não poderia ser fruto de sua imaginação fértil. Apenas não sabia o por quem, nem mesmo o porquê. Mas a ideia da "coisa", já havia se tornado real. Fábula ou não, para a criança, não restavam mais duvidas, e ainda chorando lágrimas repletas de inocência, tentou suplicar pela primeira vez por liberdade.

Por favor, me deixe sozinha! Por favor. — Escondeu o próprio rosto, em uma tentativa de se esconder de toda aquela horrível situação, mas suas mãos sequer chegavam perto.

Teria que conviver com os fatos, com os barulhos, a pouca visão e principalmente com a coisa. A chuva parecia castigar um pouco mais, e o vento gelado que já a perturbava, começou a invadir a janela carregando consigo gotículas de água. Seus lábios estavam secos e os dentes estalavam um som, ao chocarem-se uns contra os outros. Seu corpo entrou em um colapso nervoso ao sentir os braços sendo "tocados" e tentou sacudir-se de forma a se livrar daquele aperto tenebroso. Sentia um asco e um terror inigualável. Seu corpo rolou em ambas os lados da pequena cama de solteiro, para esquerda e direita, desferindo simultaneamente chutes no ar. Em vão, seu corpo permanecia preso à cama e após um esforço excessivo, deu-se por vencida e aceitou a sua condição. Seja lá o que a segurasse, era forte demais.

Dobrou e encolheu as pernas, engolindo o choro. Tentou manter a calma pela primeira vez. Respirou fundo e ignorou a janela, a chuva, a escuridão. Fechou os olhos e em uma solução óbvia, decidiu-se a tentar algo um pouco mais desesperado. Gritaria por sua liberdade. Possuía um receio de pelos gritos, os pais acharem ser um tipo de assalto, ou qualquer coisa pior, e ao ver que era um simples pesadelo, temia ficar de castigo por um mês inteiro. Sem cereal e sem a única boneca que possuía. Coisas pequenas, mas fundamentais para Rose. Decidida, encheu os pulmões e com força tentou gritar por ajuda, imediatamente, de forma quase que proposital, devido à coincidência, um trovão rasgou o céu. Um barulho alto e cortante, que abafou qualquer chance de sua família ouvir o seu apelo.

Assustada, se encolheu sem saber ao certo o que havia acontecido. O par de íris negras giraram dentro do globo ao ouvir o estrondo, tanto pelo susto causado, tanto como medida de proteção para a luminosidade que em frações de segundos iluminaria toda a rua e o que aconteceu naquela fração de segundos, fora pior que o fato do trovão descer do céu num momento totalmente inoportuno. Durante os milésimos de segundos ao qual o relâmpago iluminou a rua deserta, a luz invadiu janela adentro, tocando um pedaço que até então estava oculto. Os olhos de Rose se focaram imediatamente ali e mesmo que não conseguisse fitar e decifrar ao certo o que ela aquilo, uma coisa ela teria certeza, havia um par de olhos. Sua visão parecia melhorar gradativamente, de acordo com os acontecimentos. Agora o canto tido com a quina do quarto, possuía dois olhos. Sua coloração era anormal. Uma tonalidade estranha de roxo escuro. Profundos e enigmáticos.

Aaaagh! — Gritou, mas sua voz falhara. O que era para ser uma enorme explosão mista de surpresa e agonia tornou-se apenas um gemido abafado vindo de um canto escuro.

Sua cama esfriou e o lençol que a envolvia umedeceu. O cheiro de urina tomou conta do quarto, que agora estava repleto de um odor peculiar. O cheiro do medo. Ao sentir sua calcinha molhar e o lençol da cama umedecer, ela chorou novamente. Após aquela aterrorizante aparição, virou seus olhos imediatamente os afundando contra o colchão, abafando o choro. Mas ao retomar a postura, torcendo para que tudo fosse apenas uma ilusão causada pelo medo, os olhos continuavam lá. Exatamente no mesmo local. Profundo e penetrante, sendo o mais aterrorizador, o fato que olhavam diretamente para Rose.

Assustada, deu alguns chutes para frente, tentando se afastar, mas a única coisa que conseguiu foi retirar o lençol amarelado sobre o colchão. Sua respiração ficou ofegante e seu coração pulsou o mais rápido que podia. Se fosse mais velha, poderia correr um grande risco de enfarte. Encarou por mais um instante os olhos o som da batida de seu coração começou a ecoar em sua mente. "Tum Tum, Tum Tum, Tum Tum" era um barulho incessante e que gradativamente aumentava seu potencial. Não apenas este, mas o som dos galhos na janela se acelerou de acordo com o desespero refletido em seu peito. A esta altura, não parecia menores esbarros causados pelo vento. Aparentava algo que queria entrar, que queria pegá-la. Mirou a janela, estranhando o barulho e se assustou com o que viu. Os galhos, ainda representados apenas como silhuetas batiam mais fortes. A coisa parecia querer entrar. Mas lembrou que assim como os olhos, algo a segurava na cama, e também levado Teddy. Não era mais uma coisa, ou algo ruim, era uma espécie de reunião de todos os seus medos. Uma junção de coisas que iriam deixa-la maluca. Não conseguia fugir, nem gritar. E tudo que sua visão ofuscada pela escuridão conseguia enxergar, eram dois pares horripilantes de olhos fixos, e galhos que mais pareciam mãos enrugadas e com dedos compridos de uma bruxa de contos de fadas.

Talvez seja mesmo uma bruxa. Talvez viesse me pegar, e pediu para que seus parceiros me vigiassem e prende-se enquanto ela não conseguir entrar. — Ponderou quase delirante.

E se eu fui uma menina realmente má? Mas... Eu nunca fiz nada de ruim, eu juro. Com mindinho e tudo se precisar. Se for pelo vaso da mamãe que quebrei, me desculpe. eu sinto muito, muito, muito mesmo.


Não conseguiu terminar a frase antes de desabar em choro. Pensava insistentemente no que tinha feito para merecer aquilo. Talvez tenha sido uma garota má, o que justificaria a atitude dos pais em tranca-la durante a noite. Mas eram tudo especulações. Se eles estavam ali, tinha algum propósito. E começou a achar, mesmo que por um momento, que talvez tivesse mesmo culpa. Que merecesse tudo aquilo.

Os olhos estavam ali, parados. Em sua coloração inumana, acompanhava cada movimento da garota, a espreita. Mas seu dono, não soltara uma única palavra ou resposta. Apenas observava em oscilações na intensidade do olhar, o que mostrava que seja o que fosse, não perdia um único lance. O melhor momento ainda viria, não era a hora. Não agora. Toda a agonia soaria como uma tênue melodia, que seria preservada pelos próximos e poucos minutos. O silencio finalmente foi quebrado.

Rose... Rose... Consegue me ouvir, Rose?
— O tom era sinistro e o timbre gutural. A voz não parecia partir diretamente dos olhos e sim por todo o quarto.

A voz era impessoal e Rose não conseguia encontrar uma fonte especifica para a origem de algo tão tenebroso. Seus olhos ficaram pequenos e seu olhar era de total zelo, como se temesse pelo pior. Entretanto, no fundo a chance de um diálogo a dava um conforto quase inexistente, agarrado a chance de poder dialogar.

Eu sei que está aí, acalme-se.
— Dizia de forma sutil e maliciosa. Quase sedutora. Não possuía gênero. Ecoava como um dueto entre uma voz feminina e masculina, que ao mesmo tempo, sibilavam as frases em tom satânico. Um tom geralmente utilizado em produções cinematográficas para representar vozes de pessoas possuídas. As frases eram proclamadas com uma doçura cruel, sedutora e instigante.

Queremos apenas o seu bem. Vamos te livrar deste pesadelo cruel. Você confia em mim, minha pequena? — Indagou. O tom sórdido era claro, mas para alguém como Rose, com pouca idade e experiência, uma resposta ao seu clamor por ajuda em um momento tão crítico, era de longe aquilo que mais queria. Em sua inocência típica ela abraçara a ajuda com todo o resto de esperança que possuía.

Eu... Quem é você? Promete me ajudar? Pode mesmo me ajudar? Faço o que quiser tudinho. Mas por favor, me ajude! — Assim com antes, terminou a frase no choro costumeiro.

A garota já estava entregue. E a partir deste ponto, algo finalmente mudou. Misteriosamente sua memória funcionou de forma estranhamente bizarra. Subitamente, recordou-se de ter trago consigo uma faca. Mas precisamente um facão de cozinha. Não sabia ao certo o motivo, nem quando havia feito isso, apenas sabia que estava lá. Dentro de toda a escuridão, finalmente enxergou uma luz. Não uma luz real. Tudo ainda estava mergulhado em trevas, com o barulho continuo da chuva, seguido pelas terríveis mãos de bruxa que tentavam entrar pela janela. E os olhos, é claro, ainda estavam lá. Ainda a olhavam, fixos, como aves de rapina. Seu corpo estremecido deu lugar a um único sopro de vida, quando se recordou que agora finalmente poderia se defender da coisa. Estava determinada, e em seus olhos, brilhavam pela primeira vez uma garra única. Estava disposta a lutar por sua vida.

Faltando poucos minutos para o clímax, o clima novamente escureceu. Rose notou que a voz havia sumido, e junto com ela, grande parte de sua coragem e segurança. A ideia de estar novamente sozinha, a trazia novamente para um mundo de pesadelos. Onde seu algoz, a espreita se deliciava com cada gota de lágrima derramada, assim como lençóis umedecidos com um odor nauseante. Sentindo frio e medo, permaneceu quieta, esperando um novo contato. Seus dedos estavam gelados e as pernas molhadas de urina e da chuva fina, porém inquieta. O silencio permaneceu por mais 1 minuto. Um longo minuto onde teve que lidar com seus maiores medos. A conviver com o terror e com a culpa. Mas lembrou-se da faca. Guardada na fresta lateral entre o colchão e a cama. Faltava apenas um incentivo. Uma força que a livra-se da agonia e do cativeiro. Que garantisse a liberdade roubada pelas mãos firmes que a agarravam a cama.

Vamos querida... Eu vou te soltar e quero que de um fim nisso... E após isso venha para mim... Para meus braços. Sejamos novamente um só... Queira-me como eu te quero! — Bradou a voz com seu tom gutural grotesco. Rose era uma garota francesa, e de imediato reconheceu a canção ritualística que a criatura dona da múltipla voz começara a cantar. O que parecia o inicio de um ritual. A forma como era dita, transformava a melodia em algo macabro, com ênfase nas frases de efeito, ouviu-se:



—"Alouette, gentille alouette, Alouette, je te plumerai. Je te plumerai la tête, Je te plumerai la tête, Et la tête, et la tête. —"

Durante o ritual, Rose finalmente deu seu primeiro sorriso. Uma sensação diferente e eufórica tomou todo o seu ser. Talvez a voz fosse mesmo algo como sua "Fada madrinha" e como num passe mágica, sentiu a pressão em seus braços ceder. Os esticou levando a face, e finalmente percebeu estar livre. Apenas com uma vermelhidão nos pulsos pequenos. Ela não poderia ver, mas um sorriso sarcástico se alargava cada vez mais no tom e no jeito com que a voz bradava a canção. Livre do único obstáculo que a impedia de se libertar daquele pesadelo e finalmente encarar seu medo face a face, ela respirou fundo. Os próximos movimentos ocorreram em uma fração de segundos após sua libertação. Fora o evento final, que traria fim ao sinistro pesadelo.

De súbito, assim que sentiu seus braços livres, Rose vasculhou o canto da cama, logo encontrando o metal cintilante. Segurou firme em seu cabo de madeira e saltou da cama com enorme bravura. Correu, mergulhando na escuridão e aquele momento, poderia ser visto em slow-motion. As trevas, o barulho da chuva na rua, as mãos que pareciam querer invadir o quarto entraram em total frenesi. Os olhos ainda a fitavam, cada vez mais profundos e ameaçadores, mas Rose pela primeira vez não tinha medo. Estava firme e forte. Sozinha, no centro do caos, abraçou a escuridão e após três estocadas firmes, o sangue jorrou por sua parede cor de rosa a tingindo de vermelho, uma pintura única feita a base do sangue da coisa. Um misto de ódio e medo, ao qual a fez a dar três facadas profundas e certeiras.

Sua mãe, confusa, não entendia o porquê da ação bárbara que seus olhos presenciaram. Em frações de segundos, via sua filha virar um monstro e banhar-se de sangue. A noite estava pesada e extremamente difícil. Junto com Henry, seu marido e pai de Rose, ficaram de vigília diante toda a noite, segurando as mãos de sua filha, que desde os 8 anos, começou a sofrer de sonambulismo. Rose tinha frequentes crises noturnas, que aos poucos passaram a serem perigosas. Tinham a impressão de que começara a partir de seu primeiro filme de terror. Tratava-se de Polthergeist. Um antigo e condecorado thriller, que abordava de assuntos paranormais, com espíritos e acontecimentos surreais, envolvendo como epicentro, a criança mais nova da família. A partir deste ponto, seus pais com orientados por psicólogos, tomaram a atitude extrema de sempre trancar a porta a livrando de tudo que pudesse lhe causar mal, o que incluía facas e garfos. Mas o que eles não sabiam, é que uma noite, ainda acordada e temendo pela coisa no escuro, Rose armou-se com uma faca de cozinha, que serviria como medida contra a coisa no escuro.

Na noite presente, as crises de Rose ficaram mais fortes, e logo chamou a atenção de ambos, que não se afastaram por um minuto sequer. Henry preferiu tirar Teddy de Rose, com medo de que a mesma sufocasse ou algo do tipo em alguma possível convulsão. E Juliet, sua mãe, em momento algum a deixou sozinha. Sempre ali, com palavras de incentivo que prometiam livra-la daquele pesadelo, cantando com lagrimas nos olhos, a canção de ninar allouete, que mesmo com seu caráter sombrio, era uma tradicional canção francesa, a preferida da pequena. Sobre o pequeno armário, completando o elenco, estava Biscuit. Um gato persa de olhos que entre tantas tonalidades, beirava sempre o roxo e o lilás. Há rumores que gatos sentem anomalias sobrenaturais, e seus olhos sentem a presença de espíritos. Mesmo achando incomum, Juliet não estranhou a companhia fixa de Biscuit, sobre o armário. Quieto e compenetrado, fitando Rose de um modo que a impressão era de uma existência que seus olhos humanos não conseguiam perceber. Mas era apenas impressão, ou assim pensava em sua mente cética. O fato era que biscuit agora estava morto. Seu corpo fora atravessado pela lamina afiada e agora parte de seu sangue estava impregnado na pequena camisola branca da adorável francesinha. Frente a seus pais, notou o olhar de terror e reprovação. Juliet saltou para trás, tentando se proteger da própria filha. Estava com medo. Henry, não sabia o que fazer e apenas gritou autoritário:

Saaai! Saia daqui! Agora! Seu monstro! O que foi isso?!

Rose sem entender, mas ainda com um sorriso infantil nos lábios, respondeu com um sorriso. Feliz por ter se livrado da coisa. Agora já conseguia ver a luz. Seu quarto era apenas um quarto e a na janela, apenas pequenos galhos tocavam a vidraça. Nada que fosse capaz de fazer ruídos. Ela ainda sorrindo, virou-se para seus pais, e caminhou até eles com a arma ensanguentada em mãos.

Esta tudo bem agora, eu me livrei da coisa. Eu a matei, assim como me mandou a voz. Estou muito feliz agora, vê o sangue mamãe? Não esta orgulhosa?! — Disse repleta de inocência.

Se livrar de seu pesadelo parecia um feito incrível, passivo de orgulho, mas a única coisa que teve como retribuição foi a chance de ver de relance o trajeto da mão de sua mãe em direção a seu rosto, atingindo de forma contundente o delicado rostinho de pele suave. Era pequena, era frágil. Estava em êxtase e com o corpo sem nenhuma guarda para receber um movimento tão brusco e potente. Juliet desferiu todo seu medo e desespero no único tapa que daria em sua amada filha em toda sua vida.

O pequeno corpo de Rose tombou para trás, chocando-se contra a cama de madeira maciça. Um grande estalo ecoou, e o coração dos pais da garota pareceram terem sido atingidos por milhares de punhais afiados. Era o som do crânio de Rose, se chocando contra a cama. Sua trajetória mudou a partir deste acontecimento. O corpo que caía para o lado tombou inerte para trás. Caindo seco. Os olhos da pequena novamente estavam fechados, e desta vez, ela entraria em seu mais novo pesadelo. Desta vez, eterno. A jovem sonâmbula vivera por uma noite, em um universo paralelo entre o real e o irreal. O sonho e a realidade. Mas agora, restava apenas um único lugar para onde ir. Escuro como seus olhos fechados. Gelado como sua pele. Vazio como seu corpo. Rose estava morta. E deste pesadelo, não há um despertar. Apenas um sono profundo e eterno. No fim, ela estava certa. Existia em algum lugar, entre o real e o irreal, entre o céu e o inferno, uma coisa. E no caminho para a eternidade vazia, ela finalmente pode ver a face da coisa. Como ela era? Isso não importava. Rose só se preocupava com o sorriso macabro que havia em seus lábios. Um novo pesadelo estava prestes a começar.

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