terça-feira, 29 de outubro de 2013

[Contos] Distopia - O sentido por trás da escuridão.

lplplp



“Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça. —
1 João 1:9”



Uma cidade tingida de negro. Não em suas longas e frias noites, onde o inverno passa a tocar-lhe a pele em um frio cortante. Tão pouco em suas cores, que variavelmente intercalavam entre diversos tons de um cinza sem vida. A cidade havia a tempos se perdido na loucura, e as redeas morais que pastoreavam as ovelhas foram destruídas por um simples cutelo e muito sangue derramado. Os raios de sol pareciam não tocar a cidade, que em sua plenitude intangível de qualquer aura benigna , parecia sofrer de uma mortificante escuridão, embora não literal. Longe da moralidade e contemplando o ápice da loucura, a negro espalha-se em passos silenciosos e apressados, pelas ruas de lugar nenhum.

Os becos eram de uma escuridão profunda, que misticamente, parecia estar em total cumplicidade com os gatunos que habitavam na mais completa furtividade. Em dias de sorte, batedores de carteiras. Seres esguios e sorrateiros, geralmente armados com punhais sujos de sangue e ferrugem, ao qual nunca se saberia se morreria pelo corte, ou devido ao tétano. Em dias de azar, estupradores eram desagradavelmente comuns.

Geralmente, o elemento surpresa, o incógnito, não se caracterizava como sua marca registrada. Não eram hábeis, muito menos velozes. Na maioria das vezes, eu diria, eram monstros truculentos e bufantes, ao qual o cheiro da insanidade provida das doses cavalares de álcool e do suor exalando hormônios masculinos, denunciavam sua mediócre existência. Mas existem dias, onde a definição de azar é muito mais obscura e completa do que pode ser caracterizada em uma simples frase. As vezes, é necessária toda uma história para justificar os infortúnios da vida.

Contudo, eu devo dizer que fico mais tranquila, ou quem sabe, confortável, com a ideia de que estes, são em suma maioria, seres desgarrados de qualquer apego a moralidade, almas errantes, que se confortam em trazer o inferno a terra, com a premissa de acostumar-se a seu inevitável destino.

Mas é com o pesar em meu negro coração, que assumo enxergar bem mais do que as simples verdades que caminhavam pela terra de lugar nenhum. Não somos negros, por gatunos ou molestadores. A parte mais escura de nossa cidade, o grande negrume, estava concentrado no lugar onde a não tão pouco tornou-se o epicentro de todo o mal. Sua atmosfera era carregada de dor e tristeza, e a luz da lua, parecia não refletir sobre nós. No fundo, eu sentia que a santidade beirava a mais terrível das maldições e que a salvação era uma chave para o calabouço mais profundo da alma.



"Porque o Senhor vai sair de sua morada para punir os crimes dos habitantes da terra; porque a terra fará brotar o sangue que ela bebeu, e não ocultará mais os corpos dos assassinados. — Isaías 26:21"




Sentados e perfeitamente ordenados em fileiras, como uma legião pseudo-domada, ouvíamos calados o sermão do Padre Joseph. Neste instante, exceto a voz do velho homem que liderara a pulso firme, toda a massa religiosa de lugar nenhum, também era comum ouvir versos de súplicas e lamentos. Um quase silencioso murmúrio coletivo, que ecoava tão baixo quanto uma maldição rogada apenas com o mover dos lábios.
Lembro-me exatamente das palavras de cada sermão dado aquela noite. Joseph, nunca usou de qualquer artifício sujo ou que violasse sua santidade perante aos olhos dos fieis, e sua mão de ferro era derivada de suas palavras, que açoitavam a alma e traziam o silêncio. Embora, quando citei que os estupradores habitavam os becos, truculentos e fétidos, essa não era exatamente a única verdade. Lugar nenhum era a mesma cidade. A mesma nos becos, a mesma no clero
.



"Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se opondo contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
Romanos 13:1-2"





Um aglomerado de sensações, e quase nenhuma compreensão. Era estranho sentir seu corpo gracioso e macio ser tocado por algo velho e flácido de forma tão indecorosa. Mas em seu intimido, não ousava refutar as carícias intimas que recebia. Sentia-se um lixo preso naquele cômodo escuro a meia luz.
Queria gritar, queria correr, mas a lei da obediência escrita nos livro, era o que se perpetuava na alma do garoto como grande maldição. Diferente das 30 moedas de prata ocasionais, sua castidade fora profanada. Mas desta vez, por simples ganância familiar e uma pseudo religiosidade conveniente que justificava os meios; Como outrora, a humilhação e o espancamento, neste caso, pervertido, não lhe fora poupado. Era apenas uma criança escondida de baixo do corpo suado e ofegante de um monstro. Uma grande sombra negra, que lhe cobria por inteiro e preenchia sua castidade com dor e repulsa, tingindo-a do vermelho mais rubro. Não era a primeira lágrima que corria por seus olhos, tão pouco o ultimo pedido de clemência, mas sangrando, fisicamente e espiritualmente, esperava com invejável fé pelo dia que finalmente ficaria livre de sua cruz.





"Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos. — Hebreus 11:1"



Com os olhos atentos e falsas juras de arrependimento, a nossa reunião religiosa seguia seu rumo natural refletido nos vitrais. Em momento algum, a falácia desordenada atingia nossos corações. Era apenas um momento de fé justificada, que as vezes e apenas as vezes, parecia ser de fato fundamentada em nossos corações. Mas esse devaneio não se sustentou e logo pós fim ao pensamento utópico, onde percebi que apenas seguíamos a palavra, pois era exatamente o que a gente queria ouvir. Precisávamos do perdão divino, para sustentar o fardo de tantas pedras em nossos bolsos.
Mas de certa forma, devo assumir que eu sentia no fundo do meu negro coração, que havia algo de diferente naquela noite. Uma sensação obscura, que preenchia meu coração com um profundo temor e exalava um certo medo por todos os poros da minha pele. Não entendi a principio o motivo de tamanha exaltação, mas a medida que as palavras do Padre Joseph ecoavam ríspidas do altar, meu corpo tremia mais e mais, como se possuísse uma energia vivida e quente que aos poucos se dispersava do mesmo em um tom tão escuro quando meu coração. Aquela noite, eu conseguia ver a escuridão pairando sobre nossas cabeças.


Meus dentes começaram a estalar, em um ranger lento e continuo. A chuva que até então passara desapercebida sobre mim, mostrava-se agora como uma grande tempestade. Oh céus, como não dizer que a sua queda de indiscutível imponência era um grande dilúvio a varrer a sujeira de Deus para de baixo da terra? No exato instante que um clarão se manifestou e um raio rasgou o céu de norte a sul, eu fechei os olhos e orei. Orei com uma fé que nunca possui em toda a minha vida torpe. Uma oração digna dos desesperados que temem a fúria sagrada de Deus.



"O Senhor enviará sobre vocês maldições, confusão e repreensão em tudo o que fizerem, até que vocês sejam destruídos e sofram repentina ruína pelo mal que praticaram ao se esquecerem dele. — Dt 28:20."


Três segundos se passaram. Tão rápidos quanto o lampejo de uma vida inteira que se esvai aos olhos daquele que beira o vale da sombra da morte. Olhei ao redor, e um silêncio mórbido dominava toda a igreja como um abraço ao fim da vida. Sem exceção, todos os olhos, ditos como espelhos da alma, pareciam mortos. Secos e sem vida. Olhando inexpressivos para o além da compreensão. Se alguns de nós, em completa ironia do destino possuísse uma alma, esta, teria fugido do corpo naquele instante. Abandonado a carne podre e mesquinha.

Mas foi de uma completa ingenuidade da minha parte pensar dessa forma. Talvez esse horror que me dominou por completo, conseguiu afastar de mim os pensamentos mais racionais. Ou então, poderia dizer sem demora que finalmente os meus olhos se abriram. Joseph, parado sobre seu púlpito, foi o primeiro a finalmente reagir após aqueles poucos segundos de completa incoerência para com a realidade mundana. Respirou fundo, buscando em seus pulmões gastos e punidos pelo tempo, e engasgou logo em seguida com as palavras antes de apontar um de seus dedos para a ultima fileira da igreja, a esquerda, próxima a grande porta dupla de entrada forjada de metal ungido. Seus olhos inexpressivos, agora esbanjavam um dos sentimentos mais característicos e sinceros de nossa fraca natureza. O medo. Mais do que isso, eu diria. O terror. Não fosse isso o bastante para minha ruína completa, um segundo após o retorno de Joseph, ao que julgamos o mundo real, toda a igreja despertou do mesmo e inexplicável transe.

Pensei estar em um dia ruim, amaldiçoei meu infortúnio em possuir tais sensações que dilaceravam minha alma. Mas ao olhar para trás, o olhar curioso de todos os membros do culto acompanharam-me com incertezas, e dividiram com completa exatidão o assombro do que para mim, era a revelação das palavras ocultas por entre as linhas. O sentido real gravado no manuscrito dividido em dois testamentos. E só ai, eu percebi que era o fim.

Gritos de horror, e antes de qualquer desmaio consequente da visão insuportável que atingiu em cheio nossos espíritos, uma ânsia consumiu a todos, criando um refluxo que trouxe um liquido viscoso e quente, que de forma célere, jorrou de nossas gargantas. Tentei segurar meu pescoço, mas de nada funcionou. O vômito seguiu de forma continua, e sem muita demora, todo o chão antes reluzente, ficou tomado pelo liquido residente em nosso interior.
Corremos então para o púlpito, em completo desespero. — “Que Deus abençoe a alma dos fracos, Amem…” — Pensei, em uma breve oração em respeito dos poucos pisoteados durante a correria. Estávamos agora aglomerados, como ratos, com medo, tremendo e rezando baixinho por qualquer gesto miraculoso que nos trouxesse a salvação.




"Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza, auxílio sempre presente na adversidade. Por isso não temeremos, ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar, ainda que estrondem as suas águas turbulentas e os montes sejam sacudidos pela sua fúria. — Salmos 46:1-3"


Mais um raio rasgou o céu e com o clarão similar que parecia anunciar-se como uma revelação divina, tornou-se nítida a face da besta. Ela possuía um largo sorriso, que formava uma perfeita meia lua tocando de uma orelha a outra. E seu olhar… Aquele olhar, me lembro perfeitamente de como era terrível. Da mesma forma que pareciam pequenos e apertados, tinha a impressão de tomar o espaço de quase todo o seu rosto. Fitar dentro daqueles olhos, era a sensação de enxergar as milhares de formas possíveis de punição. Uma mutilação constante da própria carne, que durava entre uma fração de um segundo e uma vida. Não saberia como explicar a sensação temporal de olhar dentro dos olhos do diabo. Dizem que o tempo é relativo, então eu penso se ali, eu realmente passei por uma longevidade existencial além da vida, transcendendo apenas para contemplar a dor em todas as formas possíveis.

Com um terno tão escuro quando o abismo que nos encontrávamos, ele se ergueu. No lugar de seus pés, um par de cascos de ponta bifurcada, e em sua cabeça, enormes chifres retorcidos que causava a maior das agonias para aqueles que o fitasse. Jurei por um segundo que eles se contorciam naquele instante, e neste mesmo momento, soou como se todo meu corpo se revirasse ao avesso. Seu coração, se é que possuísse um, palpitava de forma compassada em uma melodia aterrorizante que sincronizada perfeitamente com as batidas do meu. O som parecia vir de todas as partes, não havia como evita-lo. Estava dentro de mim, dentro de nós. Tão distante, porém, ao mesmo tempo ao pé do ouvido. Parecia sussurrado por sua bocarra repleta de dentes afiados, a medida que o seu bufar cheirando a enxofre tocava a nuca em um lento e infinito — Ba bum... ba bum. — Um arrepio profundo tomou conta do meu ser, um gelo na espinha e uma vontade terrível de gritar do mais puro pavor. Nem uma palavra ecoou. O grito de libertação fora privado, talvez como mais uma das milhares de formas de sutil penitencia. A agonia começou a definhar meu corpo. Eu queria colocar tudo aquilo para fora, gritar por socorro ou até mesmo por clemência,mas o dom da fala desapareceu. Eu não conseguia.

Olhei para os lados e percebi com pavor que pouco a pouco, todos estavam caindo. Um por um, a pressão era demais para suportar. Cada um dos fieis, tendo sua vida ceifada pela dura verdade atrás dos panos da vida mundana. Os olhares sem vida, acinzentados e reprimidos fitavam agora o além. Mas algo me estremeceu ainda mais a alma. Reparei que pouco depois, todos pareciam sorrir. Não um sorriso qualquer, mas sim um sorriso satânico e sarcástico. Eles gargalhavam. Dezenas de cadáveres gargalhando de sua própria ruína, e apenas agora, eu pude sentir o cheiro de podridão que antes exalava de nossos corpos, mas agora, parecia compor a forma grotesca da besta que sorria a minha frente. Um cheiro tão terrível que apodreceu o meu corpo. Um cheiro familiar. O cheiro do negro, do negro de nossos corações.

No fim, apenas eu sobrei daquela carnificina espiritual. Minha mente estava destruída, meu espírito dilacerado. Estava de prontidão para a minha morte. O fim de tudo. O apagar das luzes. Mas nesse momento, eu gargalhei com uma risada peculiarmente satânica. Como eu poderia ter tamanha ingenuidade de achar que acabaria tudo por aqui?

Neste instante, eu descobri que a existência é eterna, insolúvel e minha dor não teria fim. Em meu ultimo lapso de coerência levada por um suspiro que deixou escapar o ultimo fio de vitalidade, compreendi em um segundo que beirava uma possível ex vida ou pré morte, a verdade a respeito do livro sagrado, que jazia manchado pela secreção mucosa do nosso querido padre. A concreta Imparcialidade que conduz ao caminho da verdadeira natureza perante ao equilíbrio natural da vida. Bem e mal, eram ambos uma antítese. Duas metades necessárias que não podem ser analisadas a parte como superior e inferior, certo ou errado. Fazia tudo parte do grande show do livre-arbítrio.

O som de minha voz ecoou por toda a igreja em um tom gutural diabólico e uníssono simultaneamente masculino e feminino. A ironia em tudo isto era realmente hilariante, e o som das gargalhadas foi o ultimo resquício ao qual tornou-se mais uma das muitas lendas da terra de Lugar nenhum .Tudo escureceu e como em um gélido despertar eu finalmente percebi minha nova e verdadeira condição. Via através do fino tecido a realidade agora intangível e finalmente me senti livre das cordas que me atavam ao teatro outrora conhecido como vida. Por fim, deixei-me levar junto a agonia de meus semelhantes, carregando apenas todo o horror e depravações cometidas em toda uma vida, que por dias, séculos, ou melhor, desde o inicio dos tempos, define-se como o simples e completo "mal". O lado escuro e torpe do ser humano que desde o inicio dos tempos permeia reunido em uma legião onipresente, em busca da dor, do sofrimento e da morte, que agora, depois do fim, mostrava a sua verdadeira face como a transcendência da alma que habita adormecida em todos os homens cujo o coração é negro como a noite.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por ler.