segunda-feira, 28 de outubro de 2013

[Contos] A carta e o cutelo





A luz turva pendia de um lado para o outro, iluminando amarelada, apenas a parte central do porão da casa 47. O sistema elétrico era improvisado e constantemente as lâmpadas piscavam em uma sincronia inoportuna e, por muitas vezes tida como assustadora. Mas eram apenas detalhes superficiais da história daquela noite.
O silêncio não tão tarde fora profanado pela entrada abrupta de 15 homens. Todos estranhamente furiosos e armados com armas brancas dos mais diversos tipos. Alguns portavam punhais, outros, simples facas comuns e, os mais engenhosos, até mesmo com armas improvisadas ou tochas. Sem demora, o ímpeto levou ao chão a porta de madeira que dava acesso ao porão. Os gritos de revolta ecoavam de forma homogênea e os instrumentos de ataque eram lançados ao ar, erguidos por punhos fortes e convictos.

Contudo, após o primeiro instante dentro do porão, o silêncio voltou a reinar absoluto. Os punhos regressaram e o que sobrou da tão eufórica investida fora apenas o olhar afiado de todos os participantes da revolta. Alguns bufavam, outros mais contidos, apenas fitavam com um sentimento inexplicável em simples palavras. Mas desde os tempos bíblicos é relatado como um dos 7 pecados. Simplificado como “ira”.

O sistema elétrico continuou a manifestar suas recorrentes falhas, e com isto, a fraca luz no ambiente continuava a piscar eventualmente. O famoso porão da casa 47, ao contrário da lenda e da crença popular, sempre fora um comodo simples e normal, com mobília antiga, utilizado para fins artesanais. Alguns pequenos móveis, embora relativamente grande em metros quadrados. A entrada tão pouco era oculta. Existia apenas a porta principal também de madeira e como padrão na época, uma pequena escadaria que daria acesso ao comodo, onde ao fim na parte superior, uma pequena janela que beirava o rodapé exterior da casa com vista para o jardim. Não seria correto dizer que a visão do porão da casa 47 conseguiu reter a fúria dos invasores, nem sequer os amedrontou. Entre tantos boatos deturpados, a verdade era que no centro do local que se tornaria o verdadeiro inferno, estava Markus. O grande Markus Montgomery!

Seus olhos expressavam um enorme pavor, e seu corpo estremeceu no imediato momento que fitou a chegada daqueles que seriam os seus algozes. Tentou mover os braços e as pernas em uma tentativa célere de escape, mas esta possibilidade já havia se mostrado nula. Era estranho o fato do anfitrião estar totalmente preso por em sua própria residencia por amarras poderosas, digna dos melhores marinheiros do porto, e amordaçado por um pano fino vermelho umedecido de saliva, que lhe cobria toda a boca. As amarras estavam estrategicamente posicionadas: No tornozelo, nos pulsos, e nos biceps. A cadeira por sua vez, posicionada logo abaixo da lampada central, tinha suportes metálicos em suas 4 bases que a prendiam ao chão.

Durante toda a primeira dezena de segundos após a invasão do aposento, o único som era emitido pelo corpo de Markus , que em tentativas falhas se debatia sobre a cadeira ao mesmo tempo que murmurava sons indistinguíveis e abstratos. Os olhos arregalados giravam e a artéria em seu pescoço se dilatava. A força que fazia era extrema, porém, completamente anulada pela física. Seus esforços de nada adiantavam e seu corpo mal parecia vencer em um instante sequer as amarras. Fato que tornou todo seu esforço de fuga completamente ignorado pelos presentes. Não existia fuga para Markus Montgomery, fora o único e inevitável caminho escuro, silencioso e eterno.

Entre os 15 homens, havia um que se destacava. Não por ser o mais tenebroso, ou o mais violento ou qualquer outra característica que fizesse menção a sua pessoa. Destacava-se apenas por ser o portador daquele papel amarelado, cheio de dobras mal feitas, ligeiramente amassado. O objeto que tornou –se lenda, a fagulha de todo o mito. Atualmente perdido, naquele instante caia ao chão a carta conhecida como “A confissão de Markus.”




• A confissão de Markus •




Muitos podem duvidar da veracidade das informações contidas nesta carta. Seria até plausível, pensando de um modo lógico, que neste momento eu estou completamente fora do meu juízo perfeito. Porém, meus caros, este não é o caso. Talvez meu nome não seja tão conhecido por vocês, mas eu poderia dizer o mesmo de meus feitos? Ah sim, claro. Os grandes feitos de Markus Montgomery.
Não é querendo me gabar, mas vocês provavelmente notaram o desaparecimento da pequena Belle. Não?! E o que dizer da também tão adorável Lisie?

Não importa como ou quando, importa apenas dividir com vocês como foi prazeroso... Seria essa a palavra correta? Não. Eu acho que sublime definiria melhor como me senti. Sim, sublime! Continuando, quero dividir com vocês como é sublime a sensação de deslizar uma lamina afiada de um cutelo recém-amolado por uma pele tão fina e delicada. É como cortar um tecido de seda nobre. Você apenas desliza o fio e a pele se abre suavemente em um V tingido pelo vermelho intenso.

Admito, que se eu pudesse escolher, Belle seria minha favorita. Pele alva, corpo pequenino, lábios rosadinhos e cabelos levemente encaracolados. Uma verdadeira bonequinha. Lisie era mimada, chorosa e fraca. Seus berros me enlouqueciam e por diversas vezes foi necessário socar-lhe a boca para que parasse. Embora isso tenha lhe custado alguns dentes que saltaram ao primeiro contato e parte de sua beleza. Mas meus caros, convenhamos... Se Belle conseguiu aguentar Até o sétimo dedo sem gritar tanto, porque Lisie haveria de causar tanto escândalo logo no primeiro? Perde-se a magia. Perde-se a graça e talvez por isso, eu tenha perdido a paciência e a degolado logo após tirar-lhe os quatros primeiros dedos. Assumo que não fui delicado como deveria, perdi a cabeça e fiz um corte profundo demais. Isso causou sujeira e um corpo com uma cabeça dependurada. Mas ossos do oficio. Então vamos ao ponto mais sublime... Incrível como gostei desta palavra. A minha bela Belle.

O que dizer a respeito dela? Poderia dizer tanta coisa. De todo o processo e como ela aguentou firme e forte, aos pequenos gritinhos de “por favor, pare.” Até para implorar, soube se portar como uma lady, o que lhe preservou os dentes. Tão sutil e tão delicada. Foi fácil conquistar meu fascínio. Tão avassaladores foram seus encantos que antes mesmo de deixar seu corpo inutilizável, eu resolvi abrir mão apenas por uns minutos do meu ciumento cutelo e aderi às ferramentas naturais. Por um segundo, eu posso confidenciar a vocês que os gemidos ainda constantes, desta vez não eram mais de dor, se é que vocês conseguem acompanhar meu raciocínio. Oh, a quem estou enganando?! É claro que sim! Não é nada diferente do que ocorre com os senhores nas noites de festejos, não é mesmo?!

Eu queria descrever um pouco mais sobre como se passaram voando nossa brincadeira de exatamente 2 horas e 47 minutos, de cada corte e de cada reação... Se meu timbre não fosse grave, tentaria reproduzir. Mas foi algo mais ou menos assim: “Oh, por favor... Por... Por quê?! (Aqui ela já estava um pouco engasgada com o sangue que subiu-lhe a garganta) Pare... Pare... Eu não te fiz nada...” Algo mais ou menos assim. Queria que pudessem estar aqui neste momento que escrevo isso. Minha dramatização foi perfeita, modéstia a parte.

Mas agora vocês devem estar perguntando: “Qual a razão desta carta?!” É que no fim, eu cansei de ser incompreendido. Cansei de ser tratado como um vilão, cansei de ver um ideal tão puro ser jogado no lixo. Quero que vocês, senhores, sejam a primeira dezena de minha legião. Que sigam a minha doutrina, meus ideais. Que carreguem meu nome dentro de cada um de vocês. Felizmente para mim, creio que vocês não tem escolha. Afinal, estou apenas assumindo meus crimes. E a fúria e a vingança são sentimentos tão fortes, que duvido que ousem recusar ao meu chamado. Deixarei inclusive, um presente para vocês. Será a nossa bíblia!

Tenho total ciência que poucos de vocês esperavam isso de mim, sei como em uma cidade pequena, como esta, todos se conhecem e acham saber da vida dos outros. Mas a partir de agora, e por meio desta, lanço meu nome a eternidade dos boatos e das lendas. Do murmúrio de bar e das histórias frente à fogueira.
Eu serei a ferramenta de trabalho. Serei o objeto que trará todos vocês ao meu mundo. No verso há meu endereço, assim como tudo que precisam saber para chegar até mim. Estarei esperando todos vocês, meus caros. Sinto-me em completo nirvana, e vocês? Apenas quem sente as sensações do mundo, sabe como são realmente.


ATT.
Markus Montgomery.”



Foram apenas poucos segundos entre o invadir e o atacar. Sobre o colo de Markus, estava o seu cutelo ainda tingido de sangue seco. Poucos segundos que demonstraram todo o furor e desespero do grande messias. Como dito em suas palavras, apenas quem sente as sensações no mundo, sabe como realmente é. E foi com esta afirmação que um por um, cada um dos cinco homens mutilou todo o seu corpo. Demasiadamente lento, levaram 4 horas em meio a torturas e cortes, tão qual como violação do corpo do homem que por fim, teve sua morte, empalado sobre a própria lamina do cutelo, presa a uma grande haste de metal. O sangue jorrava e as sensações por 4 horas preencheram o âmbito. Com destaque, em especial, aos dedos quebrados um por um e depois decepados, ao qual cada Homem levou um para casa como troféu. Quando terminaram, outros se contentaram com orelhas e afins.

Markus finalmente estava morto. De uma forma tão cruel que nem ele havia realizado algo assim. Mas de certa forma, sua missão conseguiu êxito total. Nenhum dos 15 homens repletos por vingança possuía algum parentesco com uma das garotas citadas. Na realidade eram só homens comuns, truculentos por natureza, separados por uma linha tênue de decência também estabelecida pela lei. Mas uma vez tomados pela fúria, devido ao tão famoso relato da lendária carta, a razão deu lugar aos instintos, a racionalidade deu lugar ao irracional. Os homens viraram animais, que até por algum tempo tornaram-se vingadores cruéis a serviço de uma justiça nua e crua, mas que após certo tempo... Como tudo na vida, fora se perdendo os valores. E no fim, tínhamos apenas 15 viciados em torturar e matar. Um prazer pouco compreendido, ensinado apenas aos seguidores da ideologia de Markus.

Um ser auto-intitulado como uma lenda viva. Um homem que sempre pregou que para saber como são as sensações, apenas sentindo-as. E existia uma verdade sádica nesta afirmação, porém, nunca masoquista. Algumas vezes se achou esperto, outras vezes cruel. Mas no fim, concluiu ser apenas obstinado o suficiente, a ponto de buscar e usar o próprio irmão gêmeo como sacrifício de iniciação. Até porque Markus precisava morrer, para assim um messias nascer. E que assim seja feita a lenda da casa 47.

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